Uma breve reflexão sobre a cultura do cancelamento

Gabriel Dudziak
5 min readJul 9, 2020

Talvez esse texto fique parecido com o anterior e os poucos que me dão a honra de ler o que escrevo podem pensar que eu só vou falar de redes sociais. Não pretendo falar só disso, mas é isso que tem mexido comigo nos últimos tempos. Assim como acredito que ainda não há debate suficiente sobre as redes sociais, seus objetivos, plataformas de negócio e consequências para a sociedade, entendo que também precisamos falar mais sobre a história de cancelar alguém na internet como modus operandi.

A carta conjunta publicada nesta quarta-feira na Harpers Magazine e assinada por escritores, pesquisadores, intelectuais, professores e outros dá um timing para esse texto, mas já pensava em falar sobre esse tema antes e — de novo — não sou a pessoa mais apropriada para escrevê-lo sob o ponto de vista teórico e do estudo. Apenas dou a minha humilde mirada. Então apreciem com muita moderação…

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O que as pessoas chamam de cultura do cancelamento é esse movimento de apontar comportamentos inadequados/inaceitáveis dos outros e ir até as últimas instâncias para que eles tenham consequências, normalmente por meio das redes sociais. Pode ser a difamação, pode ser o pedido para que a empresa dessa pessoa a demita, pode ser o constrangimento, enfim… Não vou discutir quem merece ou não merece ser cancelado, mas acho importante que notemos que muitas vezes há uma simplificação da realidade nesses movimentos de cancelar alguém. As consequências podem ser gigantescas, então entendo que é necessário que qualquer condenação abarque a complexidade necessária desses temas.

Recentemente li dois artigos sobre a cultura do cancelamento em sites estrangeiros . Um desses artigos é esse aqui, no qual a autora, Pamela Paresky, pesquisadora e escritora, traz os seguintes casos:

  • Uma escritora jordano-americana que enfrentou um processo do governo do Egito por defender o livre discurso e a imprensa livre foi “cancelada” por ter exposto uma empregada da companhia de trânsito de Washington. A trabalhadora estava comendo em um trem, o que é proibido. A escritora tirou satisfação, recebeu um “cuida da sua vida” e decidiu expor a profissional nas redes sociais. A reação das redes foi péssima, a escritora apagou o tuíte, pediu desculpas e apelou para que a companhia de trânsito não demitisse a funcionária. Não adiantou. A editora que ia publicar o livro da escritora decidiu que não valia mais a dor de cabeça e a obra não viu mais a luz do dia.
  • Um jovem adulto de 18 anos ganhou uma bolsa em Harvard. Ex-colegas do rapaz, porém, mandaram para o Huffington Post uma série de comentários racistas que esse moço fez em um chat privado quando ele tinha 16 anos. A coisa veio à tona, o rapaz se desculpou, mas não teve perdão. Harvard cancelou a bolsa.

Vamos a mais alguns casos? Agora eles vêm desse texto aqui:

  • Um cidadão que fez um “ok” com as mãos para um grupo de supremacistas brancos e que teve a foto divulgada na internet. O cidadão, que tem ascendência latina, disse que não sabia quem eram as pessoas e que não sabia que nos últimos tempos o gesto de ok (uma letra “O” com polegar e indicador e os outros três dedos levantados) tem sido sinônimo de “WHITE POWER” com o “O” na verdade sendo a parte superior de um “P” para eles. Anatomia gestual à parte, a consequência do gesto foi a seguinte: o cidadão foi demitido da empresa na qual trabalhava. Segundo a companhia “por uma série de razões”.
  • Um analista de dados para uma empresa de consultoria política publicou um paper dizendo que protestos civis não-violentos na década de 60 foram mais efetivos do que os violentos. Ele resumiu a conclusão dele em um tuíte que calhou de ser publicado nos dias iniciais da nova onda do Black Lives Matter. Imediatamente uma horda de pessoas pediu a demissão do analista de dados. Elas tiveram o pedido atendido. A empresa disse que não o demitiu por isso, mas não explicou qual foi o motivo.
  • Já um imigrante palestino que veio aos Estados Unidos em busca de uma vida melhor e que é dono de uma empresa que fornece refeições se viu em uma saia justa ao descobrir que a filha dele, gerente da empresa e então com 24 anos, teve uma série de postagens racistas do passado divulgadas novamente na internet. Os posts foram feitos quando ela tinha entre 14 e 18 anos. O dono da empresa-pai da moça- decidiu demiti-la da companhia. Não adiantou. Praticamente todos os que faziam negócios com a empresa dele decidiram cancelar os contratos.

Por fim, um último exemplo, novamente trazido pela professora Pamela Paresky, agora nesse artigo. Ela conta que uma jovem atriz de 18 anos e que tem mais de 500 mil seguidores estava expondo postagens de cunho racista feitas por crianças de 12 e 13 anos. Ela incentivava os seguidores a mandarem para ela as denúncias, junto com os nomes das escolas que as crianças frequentavam... Será que isso é aceitável?

O simples fato de fazer essa pergunta já começa a melhorar as coisas. Entendo que há muitas nuances no tema e que muitos entendem que a condenação veemente é o primeiro passo para a mudança de comportamentos. Concordo. Assim como entendo a necessidade de que pessoas que sempre foram discriminadas, caladas, violentadas, etc, marquem posições de maneira contundente.

Acho apenas que é necessário refletirmos até onde deve ir a condenação e se o condenado terá chance à defesa ou à redenção caso repense seus atos. Da mesma maneira, é necessário ter contextos para essas reflexões. Os padrões de 2009 não se aplicam em 2019, por exemplo, assim como um adulto tem mais condições de refletir sobre comportamentos do que um adolescente.

Entendo que pensar sobre tudo isso é algo importante, mas, tomando emprestadas as reflexões do texto anterior no Medium, nós não vamos ter esse tipo de comportamento desejado e desejável nas redes sociais. Elas não são feitas para isso, mas elas encontram um terreno muito muito fértil para a cultura do cancelamento.

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Em seu texto, Pamela Paresky traz ainda a reflexão da colunista do New York Times, Jennifer Senior. Ela diz: “testes de pureza são as ferramentas dos fanáticos e, no fim, a busca por pureza acaba se tornando indistinguível da luta por poder”.

Confesso que nunca olhei sob esse ponto de vista. Não sei se ele é o mais correto, mas sei sim que é necessário se atentar a isso. Pode ser que a nossa busca por justiça, igualdade e amor no fim se transforme em uma sanha por pureza e poder.

Como sou um homem branco, cis, heterossexual de classe média que mora em São Paulo, sei que não sou a pessoa certa para comentar sobre reivindicações de outros. E nem pretendo fazê-lo! Só acho muito importante pensar em para onde estamos indo e se queremos ir para lá.

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